O julgamento sobre fetos anencéfalos

Desta vez a imprensa fez seu papel: deu voz a quem era contra ou a favor, discutiu os aspectos médicos e chegou até a informar – embora menos do que deveria – sobre um medicamento que evitaria a formação de fetos anencéfalos. O assunto, que movimentou jornais, revistas e emissoras de TV foi o julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), da legalização do aborto de fetos anencéfalos. Que, como já se sabe, deixou de ser considerado crime.

Como acontece sempre que o aborto entra em pauta, a discussão foi entre os religiosos e os que se concentram na saúde da mulher. Mas, pelo menos desta vez, as mulheres foram ouvidas. Tanto as que levaram a gravidez até o fim (contra sua própria vontade ou que optaram por deixar a criança nascer) como as que interromperam a gravidez. Naturalmente a grande exceção – a menina que viveu quase dois anos – foi explorada pela TV, com entrevista da mãe e imagens da criança no seu colo. Em suma, não faltou o lado sensacionalista.

Além dos depoimentos das mães e dos juristas, tivemos a oportunidade de ler até os depoimentos de médicos que se sentem discriminados – entre os colegas – por fazerem o aborto amparados pela lei.

Mas o grande o destaque foram, sem dúvida, as sentenças dos juízes que votaram a favor, apresentadas resumidamente em quadros destacados nos jornais:

“O feto anencéfalo é incompatível com a vida. É desproporcional proteger o feto que não sobreviverá em detrimento da saúde mental da mulher.” (Marco Aurélio Mello, relator)

“ Não há interesse em tutelar uma vida que não vai se desenvolver socialmente. Proteger a mulher nesse caso é proteger sua liberdade de escolha.” (Rosa Weber)

“Ao redigir os artigos do Código Penal sobre aborto, o legislador não sabia que seria possível, no futuro, identificar a anencefalia ainda na gestação. É uma questão de saúde pública.” (Luiz Fux)

“O feto anencéfalo não tem viabilidade de desenvolver uma vida extrauterina. A anecefalia é um trauma para todos, não só para a gestante.” ( Carmen Lucia)

“Nem toda interrupção de gravidez é um aborto para fins penais. O martírio é voluntário e não deve ser imposto à gestante.” ( Carlos Ayres Britto)

Encerrada a votação, com a decisão de que o aborto deverá ser praticado pelo SUS, sem custo para as pacientes, o assunto entra num novo patamar, que certamente não vai mobilizar a imprensa como aconteceu durante o julgamento. A ponto de alguns veículos, como o Jornal do Brasil, terem feito uma pesquisa online entre seus leitores para saber se eles eram favoráveis ou não ao aborto de fetos anencéfalos (69% dos leitores votaram contra).

Resta agora a regulamentação do procedimento que deverá ser autorizado depois de avaliação médica. O Ministério da Saúde garantiu que esse ponto estará resolvido no máximo em 60 dias. E a imprensa, que deu tanto destaque ao assunto, deverá ficar atenta – e não, como acontece em tantos outros casos, deixar o tema cair no esquecimento.

Em reportagem publicada na edição de sexta-feira (13/4) do Estado de S.Paulo fica claro que o julgamento do STF regulamenta, mas não resolve o problema:

“Profissionais de saúde desconhecem as situações em que a legislação brasileira permite o aborto. Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo (USP), feita na capital, mostra que 97% dos enfermeiros entrevistados; 90% dos psicólogos, nutricionistas e fisioterapeutas; e 32% dos médicos não sabem quando o procedimento é legal.”

A autora da pesquisa, a psicóloga Gláucia Rosana Guerra Benute, explica:

“O aborto é um tema difícil até para os profissionais da saúde. O desconhecimento é responsável por atitudes discriminatórias e julgamentos das pacientes”.

O coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Bayton, Jeferson Drezett (entrevistado na mesma reportagem), atribui o desconhecimento à falta de capacitação dos profissionais. E afirma:

“Não adianta apenas escrever normas. É preciso capacitar, treinar e orientar os profissionais sobre o tema.”

Ao mesmo tempo em que treina os profissionais para atender os casos de aborto previstos em lei, o Ministério da Saúde poderia usar o interesse da mídia em falar do assunto para discutir a prevenção desta e de outras doenças que afetam as mulheres, grávidas ou não.

[Ligia Martins de Almeida é jornalista]

Fonte:
Observatório da Imprensa

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